sexta-feira, 12 de novembro de 2010

PELOS CAMINHOS DA CRÔNICA – RELATO DE UMA PRÁTICA

Ionã Carqueijo Scarante[1]


A Olimpíada de Língua Portuguesa – Escrevendo o Futuro, Edição 2010, tem como objetivo contribuir para a melhoria das práticas de escrita de alunos brasileiros, motivando-os e expondo-os a uma diversidade de situações comunicativas, por meio de uma sequência didática – conjunto de oficinas e de atividades escolares sobre um gênero textual.

Para elaborar este relato, revisei minhas anotações sobre as atividades desenvolvidas em sala de aula durante as oficinas propostas pela Edição 2010, da Olimpíada de Língua Portuguesa – Escrevendo o Futuro. Escolhi o gênero crônica para desenvolver esta narrativa, pensando nos momentos mais marcantes do meu cotidiano durante a aplicação das oficinas. A travessia pedagógica não foi muito tranquila, mas foi gratificante.

Para começo de conversa, expus aos alunos a importância da aprendizagem da leitura e da escrita, pois um indivíduo que não desempenha bem estas habilidades estará fadado não só ao fracasso escolar, mas, sobretudo, à exclusão social. Alguns demonstraram desânimo com o volume de textos para ler. E, aos poucos, começaram a transitar da rejeição à adesão. A partir daí, um sentimento de renovação tomou conta de mim, sentia como se carregasse uma “chama olímpica contra o iletrismo”.

Para a introdução ao gênero, apresentei-lhes uma variedade de crônicas de autores diversos e de épocas diferentes, partindo de Fernão Lopes – literatura quinhentista, das origens da crônica – à contemporaneidade. Entre os cronistas indicados aos alunos, tive o cuidado de apresentar-lhes um cronista nazareno, que antes de publicar vários romances e livros de poesia, exercitou a pena em periódicos locais: Anísio Melhor (1885-1955). Autor pouco conhecido, mas que compôs uma obra que se impõe pela diversidade de gêneros literários: contos, crônicas, novelas, romances e poemas.

Os alunos contemplaram os textos, observando as diversidades de estilo e de linguagem entre autores de épocas diferentes e puderam perceber que a crônica mudou ao longo dos anos, como tudo muda. E hoje com seu ar despojado, despretensioso, “próxima da conversa e da vida de todo dia” (Arigucci, 1987, p. 51), tem como objetivo maior promover uma leitura descompromissada, capaz de emocionar, fazer rir, e de vez em quando, relaxar as nossas tensões do dia a dia.

Nas oficinas desenvolvidas, procurei fugir de uma concepção “didatizadora” dos textos. Assim, as crônicas trabalhadas pulsaram em nós, fazendo circular saberes diversos de cronistas brasileiros, com suas narrativas capazes de captar um momento, um flagrante do cotidiano, um aspecto do lugar onde vivem, de pintar retratos de situações humanas que não esmaeceram com o passar do tempo. Por meio dos recursos literários, tecidos cuidadosamente, os cronistas fazem com que seus textos perdurem e sejam apreciados, mesmo com o passar do tempo, da moda ou da notícia, levando a desdobramentos e movimentos outros. Tal como afirma Walter Benjamin (1994, p. 204) a narrativa não se entrega, “ela conserva suas forças e depois de muito tempo ainda é capaz de se desenvolver (...) conservam até hoje suas forças germinativas”.

Prossegui caminhando com os alunos por entre as crônicas, apresentando-lhes produções de Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Armando Nogueira, Machado de Assis, Ivan Ângelo, mestres do gênero. Decidi alimentar ainda mais o imaginário deles, convidei-os a fazerem uma caminhada pela escola, munidos de caderno, lápis e borracha. A tarefa era anotar tudo o que se identificasse com o cotidiano da escola. A caminhada chamou a atenção de todos. Ao voltarmos para a sala, um dos alunos disse: “nunca pensei que para escrever um texto alguém tivesse que se desgrudar da cadeira e caminhar anotando coisas.”

Listamos, no quadro, fatos presenciados durante a caminhada, ressaltando que e da observação da realidade que nascem as crônicas. Nesse momento, com a classe motivada e cheia de indagações, apresentei a proposta de construção de uma crônica. Eles poderiam utilizar elementos anotados durante a caminhada. Alguns se mostraram resistentes em desempenhar tal tarefa; outros argumentaram que ainda não tinham o conhecimento necessário para cumpri-la. Expliquei que necessitava conhecer as dificuldades que eles tinham e convenci-os a escrever; eles precisavam vencer o medo do papel em branco. E assim começaram a “transposição simbólica da experiência de vida, para o plano artístico da literatura” (Arigucci, 1987, p. 53). Percebi nesse momento a importância de encorajá-los a continuar aprendendo sobre as crônicas.

Pude perceber, no decurso da leitura individual de cada texto que produziram, que a sala de aula passou a ser habitada por saberes pessoais e subjetivos, provenientes de suas vivências na escola e fora dela. Muitos dos textos produzidos pelos alunos assemelhavam-se a descrições, mescladas de impressões. Alguns arriscaram contar fatos que presenciaram na escola. Outros expuseram suas angústias, suas frustrações como estudante. Outros, infelizmente, não conseguiram realizar a atividade, mas nem por isso deixei de encorajá-los.

Durante a escrita-coletiva, uma das propostas das oficinas, os alunos ensaiam a escrita individual. E no momento da reescrita, quando todos voltaram o olhar para o texto, lembrei-os que não poderiam se esquecer do leitor, já que as produções seriam publicadas no mural e no site da escola. Ao tornar público esses textos, concretiza-se a ideia de que estão escrevendo para leitores reais, que todo texto tem uma finalidade. Para tanto, retomei com os alunos as características da crônica, sobretudo o teor crítico e subjetivo do gênero. Falei da importância das idas e vindas, pois mesmo os escritores famosos escrevem e reescrevem os textos quantas vezes for necessário para que fiquem bem escritos. Um processo natural de construção e reconstrução que a linguagem escrita exige.

Foi uma tarefa árdua convencê-los a não desistir, conscientizá-los que a reescrita é um momento essencial para a atividade de produção de textos. Nesse processo coletivo, eles puderam inferir no texto do outro, analisando-o e corrigindo-o. Para isso, muitas questões nortearam o trabalho e proporcionaram a reflexão dos alunos sobre o gênero, como por exemplo: O cenário na crônica reflete o lugar onde vive? Ela cumpre o objetivo primordial da crônica: entreter, informar, divertir, fazer rir, entre outros? A narrativa é escrita em 1ª ou em 3ª pessoa? Há um modo peculiar de dizer? Que tom o autor usa ao escrever: irônico, humorístico, lírico, crítico?

Finalmente, os alunos começaram a escrever individualmente. Eram “ensaios” de crônicas. Eles caminhavam pela cidade, buscando imagens instigantes, fatos do cotidiano, imagens que retratam a vida, o mundo do trabalho, o trânsito, os valores culturais e estéticos da comunidade em que vivem. Esse foi o ponto de partida para a escrita da crônica que poderia representar a escola na Olimpíada. Muitos foram os olhares, muitas foram as ideias. Muitas idas e vindas, recomeços e mudanças. A reescrita possibilitava o aprimoramento dos textos; e é nessa hora que o professor deve atentar para a preservação das marcas autorais.

Alguns alunos não conseguiram, apesar de todo esforço empreendido, escrever um boa crônica, mas ao final das oficinas já expunham melhor as suas ideias. Outros conseguiram escrever textos nos quais verificamos o cronista que anda à toa, à procura de um mote para escrever sua crônica; olhos que passeiam pela cidade e captam cenas do cotidiano: o simples transformado em iluminação.

Falar do lugar em que vivem, desencadeou nesses meninos e meninas o compromisso com a própria cidade, alguns denunciando problemas, outros anunciando esperanças no futuro. Por fim, participar da Olimpíada significou muito mais do que competir com outros. Foi muito mais do que partilhar informações, tivemos antes, a partilha de valores, a flutuação por meio da leitura, e, vale dizer, o surgimento de novos escritores. Além disso, essas trilhas apontadas pela Olimpíada enriqueceram as minhas aulas de Língua Portuguesa e me ajudaram a articular novas atividades de leitura e produção escrita.

Referências bibliográficas

ARIGUCCI JR, David. Enigma e comentário. Ensaios sobre literatura e experiência. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Lescov” In: Magia e Técnica, Arte e Política – Obras Escolhidas, 7ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.



1 Ionã Carqueijo Scarante é formada em Letras (UNEB), Especialista em Língua Portuguesa: Texto (UEFS), Mestre em Cultura, Memória e Desenvolvimento Regional (UNEB), professora do Colégio Estadual Governador Luiz Viana Filho, Nazaré- BA.

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